'/> ·ï¡÷¡ï· V I D A Humana·ï¡÷¡ï·: Dentes e sociedade.

janeiro 20, 2008

Dentes e sociedade.


 
 
Do livro '"Pensamentos e meditações", Kahlil Gibran.

Eu tinha um dente cariado que me preocupa­va. Ele ficava dormente durante o dia. Mas, na tranqüilidade da noite, quando os dentistas estavam dormindo e as farmácias fechadas, começava a doer. Um dia, esgotou-se minha paciência, fui ao den­tista e pedi que extraísse aquele maldito dente, que me maltratava e me negava a alegria do descanso convertendo o silêncio de minha noite em gemidos e mal-estar. O dentista sacudiu a cabeça e disse:
- "É tolice extrair seu dente, se podemos curá-Io”.

Então começou a perfurar sua face e limpar as cavidades; aplicou enfim, todos os meios para res­taurá-Io e torná-Io livre da cárie. Terminando de usar o motor, obturou a cárie com ouro puro e disse orgulhosamente:
- "Seu dente doente está agora mais forte e mais sólido do que os seus bons”.

Acreditei nele, paguei e parti dali. Mas antes que a semana terminasse, o dente em questão voltou à sua enferma condição, e a tortura que me impôs convertia as lindas canções de minha alma em lamúrias e agonia.
Então, fui a outro dentista e ordenei:
- "Extraia esse maldito dente, sem perguntar-me nada, pois a pessoa que sofre as dores não é como a que as des­creve”.

Obedecendo meu comando, o profissional ex­traiu o dente. E olhando para o dente, comentou:
- "Você fez bem em extraí-Io. Está podre”.

Na boca da sociedade, há muitos dentes doen­tes, decompondo-se nos ossos dos maxilares. Mas a Sociedade não faz esforços para extraí-Ios e livrar-­se dessa aflição. Ela se satisfaz com as obturações a ouro. Muitos são os dentistas que tratam os dentes cariados da Sociedade, simplesmente obturando-os com ouro brilhante. Numerosos são aqueles que vivem dos emplas­tros de tais reformadores - e a dor; a doença e a morte são suas recompensas. Na boca da nação síria, há muitos dentes apo­drecidos, pretos e sujos, inflamados e fétidos. Os doutores tentaram curas com obturações de ouro, em vez de extraí-Ios. E a doença permanece.

Uma nação com dentes apodrecidos está conde­nada a ter um estômago doente. Muitas são as nações atormentadas por esse mal-estar. Se você deseja saber quais são os dentes cariados da Síria, visite suas escolas, onde os filhos e filhas de hoje se preparam para tornar-se os homens e mu­lheres de amanhã. Visite os tribunais e testemunhe os atos fraudulentos e corruptos daqueles que de­veriam prover justiça. Veja como eles fazem cha­cotas dos sentimentos e pensamentos do homem simples, tal como o gato quando zomba de um rato.

Visite as casas dos ricos, onde reinam a vai­dade, a falsidade e a hipocrisia. Mas não se esqueça de passar também por entre as choupanas miseráveis, onde habitam o medo, a ignorância e a covardia. Depois visite os dentistas de dedos ligeiros, pos­suidores de instrumentos delicados, panacéias den­tárias, sedativos e que gastam seus dias enchendo cavidades nos dentes apodrecidos da nação para dis­farçar a cárie.

Fale com esses reformadores, que se apresen­tam como a inteligência da Síria e organizam socie­dades, promovem conferências e fazem pronuncia­mentos públicos. Quando falar-lhes, ouvirá melodias que talvez soem mais sublimes que o reconfortante som da pedra do moinho, e mais solenes que o coaxar de sapos numa noite de junho.

Quando você lhes disser que a nação síria morde seu pão com dentes cariados, e que cada pedaço mastigado é misturado com saliva poluída que ino­cula moléstias no estômago da nação, eles respon­derão: "Sim, mas estamos buscando obter melhor obturação dos dentes e melhores sedativos”. E se você sugerir-Ihes a idéia de "extração", eles irão rir-lhe na face por você não ter conhecimentos da nobre arte da odontologia, que sabe ocultar en­fermidades.

Se você insistisse, eles o deixariam sozinho, afastar-se-iam dizendo para si mesmo: "Muitos são os idealistas neste mundo, e quão frágeis são os seus sonhos”.

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